sábado, 29 de agosto de 2009

PROCEDIMENTOS MEDIEVAIS.

Antes da anestesia, é compreensível que a medicina desse ouvidos à ideologia estúpida de valorizar o sofrimento .
QUANDO SEU Araujo disse que seria submetido a uma biópsia de próstata, alertei-o a não aceitar o exame sem anestesia. Que falasse com o médico antes do procedimento, mostrasse estar informado de que se tratava de uma intervenção dolorida e não se deixasse convencer do contrário. O conselho foi de pouca valia. O jovem médico que o atendeu explicou-lhe que o convênio dava direito à biópsia, mas não à sedação. Se fizesse questão de recebê-la, teria que pagar por ela; gasto inútil, a seu ver, porque seriam apenas algumas "picadinhas" com uma agulha introduzida por via retal. Coisa à toa. Terminado o exame, voltaria para casa sem necessidade de permanecer na clínica até que acabasse o efeito da anestesia. Dias mais tarde, seu Araujo lamentaria: "Cada vez que o aparelho disparava a agulha, parecia que o diabo me cutucava com um tridente em brasa. Nunca senti dor tão fina e profunda, só não gritei porque fiquei envergonhado. Foram doze estocadas, nas últimas ainda tomei bronca porque não consegui ficar sem me mexer". Quando terminou, Araujo vestiu a roupa e saiu na direção do ponto de ônibus: "Encostei num poste e fechei os olhos para passar a tontura. Não sei o que era pior: a dor ou a humilhação". Essa história foi contada na mesa de um bar, numa reunião com um grupo de carcereiros do antigo Carandiru, encontro que repetimos a cada duas ou três semanas, há muitos anos. Dos homens ali presentes, outros dois haviam passado pelo mesmo suplício, depois de cair na conversa das "picadinhas" e da "dorzinha". No caso de um deles, ex-diretor do pavilhão dos reincidentes, o médico teve a boa vontade de pedir para o convênio autorizar a anestesia, mas o pedido foi negado. Segundo o ex-diretor, no entanto, a negativa ocorreu por causa dos termos em que a solicitação foi redigida: "Imagine que ele justificou a necessidade de anestesia dizendo que era para "dar conforto ao paciente". Conforto? Ele devia ter dito que era para evitar aquela dor horrível cada vez que a agulha me beliscava por dentro. Pegou até mal para mim, ele dizer que eu ia levar no rabo e ainda fazia questão de conforto". Daí em diante, a conversa enveredou pelo questionamento da masculinidade de cada um dos presentes, tema recorrente entre homens reunidos em mesas de bar. Na história da humanidade, resistir à dor sempre foi apreciado como ato de heroísmo: o soldado no campo de batalha com a perna amputada, a mulher em trabalho de parto sem dar um gemido, a criança imóvel enquanto lhe arrancavam as amígdalas despertavam respeito e admiração geral. Para os mais religiosos, sofrer purificava as almas pecadoras. Antes da descoberta da anestesia, é compreensível que a medicina desse ouvidos a essa ideologia estúpida de valorização do sofrimento. Diante da dor, o que podia dizer o médico além de recomendar coragem, determinação e bolsa de água quente? Mas conviver com a dor na prática diária em pleno século 21, sem fazer uso da melhor tecnologia para aliviá-la, é voltar aos tempos medievais. Dispomos de analgésicos potentes e de anestésicos de ação rápida que permitem acordar o enfermo imediatamente ao final da intervenção. Se é considerado desumano o profissional que deixa de medicar uma pessoa com dor, qual a justificativa para submetermos alguém a um procedimento que irá provocá-la, sem tomarmos as devidas precauções?
Aceitar passivamente que a culpa é dos convênios, que se recusam a cobrir os gastos com anestésicos e sedativos, é compactuar com a defesa de interesses financeiros às custas do sofrimento alheio. Para ficar no exemplo das biópsias de próstata: se nós nos recusarmos terminantemente a realizá-las sem sedação, o impasse será resolvido. Esse problema não é exclusivo da medicina brasileira. Biópsias de próstata sem anestesia são realizadas todos os dias em alguns dos melhores centros americanos e europeus, com a mesma justificativa: dá para suportar! Dá para suportar quer dizer exatamente o quê? Que ninguém morre de dor? Se nossos Conselhos Regionais considerarem comportamento antiético indicar intervenções como essa a sangue frio e punirem os profissionais e as instituições que insistirem na sua realização, teremos dado um passo importante para tornar mais humana a prática da medicina, profissão que tem como finalidade aliviar o sofrimento humano.//
(Fonte:Folha/SPDráuzio Varela)//.

2 comentários:

Anônimo disse...

Devem pensar que ja que a mulher suporta a dor do parto, nada mais normal e natural do que o homem levar umas espetadelas naquela região mais sensível.
=/

angela disse...

Li este texto na folha e achei muito pertinente as colocações do Drauzio Varela, tenho um amigo que passou por isso e ficou "passado"" alguns dias. Segundo ele foi um horror. Ninguém merece.
Abraços