É preocupante que militares se arroguem como censores da linguagem de um decreto presidencial e exijam modificação do texto a seu comandante em chefe.
NÃO FAZ PARTE da tradição política brasileira restaurar a verdade do passado. Depois da ditadura do Estado Novo, na Constituinte de 1946, por iniciativa do deputado e general Euclydes Figueiredo, foi criada uma comissão sobre os presos políticos de 1934 a 1945, mas não funcionou por falta de quorum. Quebrando essa tradição do silêncio, em 1985 o "Brasil Nunca Mais" documentava o uso que a ditadura militar fizera dos aparatos policiais e de estrutura militar do Estado para a repressão das dissidências entre 1964 e 1985. Se havia alguma dúvida sobre a responsabilidade do Estado brasileiro pelos crimes cometidos nessa repressão, essa se dissipou. Ficou patente a responsabilidade incontestável do Estado brasileiro pelas violações de direitos humanos perpetrados pela ditadura militar, que afinal foi reconhecida pela lei 9.140/95, a lei dos desaparecidos. Não deixa de ser patético que, 15 anos depois desse reconhecimento legal, um decreto sobre a Comissão Nacional da Verdade não possa utilizar a expressão "repressão política". No processo de consolidação da democracia brasileira é preocupante que comandantes militares se arroguem como censores da linguagem de um decreto presidencial e exijam modificação do texto a seu comandante em chefe, aos quais devem hierarquicamente obediência. Se os comandantes militares em 1995 tivessem sido consultados a respeito da decisão do Executivo de criar um processo de reparação aos atingidos pelo governo militar, possivelmente até hoje não haveria o reconhecimento dos desaparecidos políticos. Em nenhuma democracia consolidada militares opinam sobre decisões do governo ou se manifestam contra atos do governo ameaçando se demitir, gesto meio ridículo, pois nem ministros são e mesmos os ministros sabem que são demissíveis ad nutum, por um simples aceno de cabeça do governante. Entre todos os exércitos saídos fortalecidos na democracia depois de ditaduras, como na Grécia, na Espanha, em Portugal, na Argentina, no Chile, no Uruguai, os militares não se solidarizam com seus antecessores que perpetraram torturas e crimes contra a humanidade. A formulação do novo decreto ao alterar a caracterização precisa do "esclarecimento público das violações de direitos humanos praticadas no contexto da repressão política" por "examinar as violações de direitos humanos" retrocede em relação ao reconhecimento da responsabilidade do Estado pelos crimes da ditadura então em vigor. Em vez de se "esclarecer" agora vai se "examinar" (poderia haver verbo mais asséptico?) num período indeterminado entre 1946 e 1988, fazendo desaparecer a periodização do regime militar definida na legislação sobre os desaparecimentos, 1961 a 1988. Agora as violações de direitos humanos pelo Estado da ditadura militar perdem toda sua especificidade, exorcizando qualquer risco que os crimes dos torturadores sejam reconstituídos -pois disso se trata, nenhuma comissão da verdade processa ou julga ninguém-, os autores, identificados e a linha de comando, desvendada. Suavemente ainda abre-se "sotto voce" a porta para examinar o "outro lado" (as vítimas, as organizações não estatais armadas e as dissidências) claramente anistiado, inclusive por manifestação na época da Lei da Anistia pelo Superior Tribunal Militar. Esses do "outro lado", que nos centros de detenção das Forças Armadas eram inicialmente sequestrados, interrogados e torturados e depois processados e julgados pela legalidade autoritária construída pelos atos institucionais e pela legislação de segurança nacional. Entre 1964 e 1979, 2.828 réus civis foram condenados pela justiça de exceção dos tribunais militares regionais, recebendo penas entre quatro e dez anos. Finalmente, ao se renunciar a propor um projeto claro e definido de Comissão da Verdade, substituindo-a por um grupo de trabalho para formatar um projeto para o Congresso Nacional, corre-se o risco de não se ter Comissão da Verdade alguma. É improvável que a presente legislatura, tão desgastada, num ano eleitoral, vá queimar cartuchos votando tal comissão. Ou então, para não incomodar os comandantes militares, o projeto será tão aguado que a comissão não terá nenhum efeito em curto prazo, seja na reconstituição da verdade ou para a reconciliação, seja para trazer a paz e a justiça para os familiares dos desaparecidos políticos que lutam pela verdade faz 30 anos. E o Brasil continuará na rabeira de todos nossos vizinhos do Cone Sul que reconstituíram a história dos horrores e já se livraram das trevas das ditaduras. Que baita constrangimento.
(PAULO SÉRGIO PINHEIRO, 66, é professor-adjunto de relações internacionais da Brown University (EUA) e ex-secretário de Estado dos Direitos Humanos).
NÃO FAZ PARTE da tradição política brasileira restaurar a verdade do passado. Depois da ditadura do Estado Novo, na Constituinte de 1946, por iniciativa do deputado e general Euclydes Figueiredo, foi criada uma comissão sobre os presos políticos de 1934 a 1945, mas não funcionou por falta de quorum. Quebrando essa tradição do silêncio, em 1985 o "Brasil Nunca Mais" documentava o uso que a ditadura militar fizera dos aparatos policiais e de estrutura militar do Estado para a repressão das dissidências entre 1964 e 1985. Se havia alguma dúvida sobre a responsabilidade do Estado brasileiro pelos crimes cometidos nessa repressão, essa se dissipou. Ficou patente a responsabilidade incontestável do Estado brasileiro pelas violações de direitos humanos perpetrados pela ditadura militar, que afinal foi reconhecida pela lei 9.140/95, a lei dos desaparecidos. Não deixa de ser patético que, 15 anos depois desse reconhecimento legal, um decreto sobre a Comissão Nacional da Verdade não possa utilizar a expressão "repressão política". No processo de consolidação da democracia brasileira é preocupante que comandantes militares se arroguem como censores da linguagem de um decreto presidencial e exijam modificação do texto a seu comandante em chefe, aos quais devem hierarquicamente obediência. Se os comandantes militares em 1995 tivessem sido consultados a respeito da decisão do Executivo de criar um processo de reparação aos atingidos pelo governo militar, possivelmente até hoje não haveria o reconhecimento dos desaparecidos políticos. Em nenhuma democracia consolidada militares opinam sobre decisões do governo ou se manifestam contra atos do governo ameaçando se demitir, gesto meio ridículo, pois nem ministros são e mesmos os ministros sabem que são demissíveis ad nutum, por um simples aceno de cabeça do governante. Entre todos os exércitos saídos fortalecidos na democracia depois de ditaduras, como na Grécia, na Espanha, em Portugal, na Argentina, no Chile, no Uruguai, os militares não se solidarizam com seus antecessores que perpetraram torturas e crimes contra a humanidade. A formulação do novo decreto ao alterar a caracterização precisa do "esclarecimento público das violações de direitos humanos praticadas no contexto da repressão política" por "examinar as violações de direitos humanos" retrocede em relação ao reconhecimento da responsabilidade do Estado pelos crimes da ditadura então em vigor. Em vez de se "esclarecer" agora vai se "examinar" (poderia haver verbo mais asséptico?) num período indeterminado entre 1946 e 1988, fazendo desaparecer a periodização do regime militar definida na legislação sobre os desaparecimentos, 1961 a 1988. Agora as violações de direitos humanos pelo Estado da ditadura militar perdem toda sua especificidade, exorcizando qualquer risco que os crimes dos torturadores sejam reconstituídos -pois disso se trata, nenhuma comissão da verdade processa ou julga ninguém-, os autores, identificados e a linha de comando, desvendada. Suavemente ainda abre-se "sotto voce" a porta para examinar o "outro lado" (as vítimas, as organizações não estatais armadas e as dissidências) claramente anistiado, inclusive por manifestação na época da Lei da Anistia pelo Superior Tribunal Militar. Esses do "outro lado", que nos centros de detenção das Forças Armadas eram inicialmente sequestrados, interrogados e torturados e depois processados e julgados pela legalidade autoritária construída pelos atos institucionais e pela legislação de segurança nacional. Entre 1964 e 1979, 2.828 réus civis foram condenados pela justiça de exceção dos tribunais militares regionais, recebendo penas entre quatro e dez anos. Finalmente, ao se renunciar a propor um projeto claro e definido de Comissão da Verdade, substituindo-a por um grupo de trabalho para formatar um projeto para o Congresso Nacional, corre-se o risco de não se ter Comissão da Verdade alguma. É improvável que a presente legislatura, tão desgastada, num ano eleitoral, vá queimar cartuchos votando tal comissão. Ou então, para não incomodar os comandantes militares, o projeto será tão aguado que a comissão não terá nenhum efeito em curto prazo, seja na reconstituição da verdade ou para a reconciliação, seja para trazer a paz e a justiça para os familiares dos desaparecidos políticos que lutam pela verdade faz 30 anos. E o Brasil continuará na rabeira de todos nossos vizinhos do Cone Sul que reconstituíram a história dos horrores e já se livraram das trevas das ditaduras. Que baita constrangimento.
(PAULO SÉRGIO PINHEIRO, 66, é professor-adjunto de relações internacionais da Brown University (EUA) e ex-secretário de Estado dos Direitos Humanos).
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